© José Carlos Bôto

Foram os artesões alentejandos, descendentes dos mestres italianos na arte do cobre, que faziam algumas cataplanas, mas como utensilio dos caçadores. Estes levavam-nas facilmente nas garupas dos cavalos, ocupando pouco espaço devido à sua forma e eram usadas para confecionar a primeira caça, geralmente lebre ou perdiz. Nos anos 60, a cataplana foi descoberta no Algarve para os pratos de peixe e marisco, tornando-se um dos mais famosos simbolos de referência na Região e uma peça central na promoção da gastronomia como produto turístico. Representada nos folhetos, fotografada à mesa de turistas e reproduzida como brinde promocional, tornou-se por isso o maior icone algarvio

Cataplana de marisco

A Cataplana é um peculiar e singular utensílio culinário português, cujas origens ainda pouco se sabe, uma vez que não existem registos históricos oficiais do seu aparecimento e criação. Para encontrarmos as raízes da Cataplana, somos quase que obrigados a investigar neste caso a influência árabe do Norte de África, que durante mais de 500 anos (séc. VIII a séc. XIII) marcaram imenso os destinos da região Algarvia, encontrando-se ainda bem patentes no seu artesanato. No Norte de Africa, encontramos um utensílio também muito antigo, cujo processo de cozedura se assemelha imenso ao utilizado na Cataplana. Trata-se pois da célebre "Tajine" marroquina, que embora tradicionalmente feita em barro, utiliza na confecção dos alimentos o mesmo tipo de cozedura semi-hermética a vapor, além dos pratos nela confeccionados serem cozinhados lentamente e a temperaturas baixas tal como na Cataplana.

A Cataplana tal como a conhecemos hoje, começou a ser produzida há muitas décadas na região Algarvia por antigos caldeireiros, mestres na arte de trabalhar o cobre, pelo qual esta região foi outrora muito conhecida. A Cataplana trata-se basicamente de duas meias panelas côncavas, unidas por uma dobradiça e com dois fechos laterais, possibilitando assim uma cozedura quase hermética das iguarias, tornando-se no fundo, percursora da actual panela de pressão e fazendo desta de facto uma verdadeira panela de pressão primitiva. O uso do cobre permitiu deste modo uma excelente condutividade do calor por toda a Cataplana, além de também dar um sabor especial único e incomparável às iguarias nela confeccionadas, propriedades naturais deste nobre metal, cujo uso já remonta a milhares de anos, tendo sido utilizado por antigas civilizações como os Sumérios, Egípcios, Babilónicos, Fenícios, Romanos e Árabes.

Artesanato

Os trabalhos em cobre no Alentejo e Algarve, avivam a memória da presença árabe na região e transportam o visitante à proximidade das culturas mediterrânicas e do Norte de África. Tradicionalmente, o cobre era utilizado na preparação de variados utensílios de cozinha.

Cozinha em cobre - Palácio de Vila Viçosa

Alambiques em cobre

Os chamados tachos d’arame , nome que se deve ao facto de cobre se dizer “rame” em italiano e muitos mestres caldeireiros terem imigrado deste país. O povo adapta o que ouve e o novo nome fica. Estas panelas de cobre ou latão de uso quotidiano, utilizadas normalmente para confeccionar o xarém de milho , que são carinhosamente exibidas em muitas cozinhas algarvias. A doçaria também utiliza tachos de cobre, mas de fundo redondo, para facilitar a mistura da massa. No Algarve é usado muito para a preparação do ponto de açucar para cobrir a amêndoa. Os emblemáticos alambiques, constituidos por uma caldeira e uma cabeça, onde está ligada uma serpentina arrefecida, responsável pela condensação do álcool. Muito vulgar na Serra Algavia para a produção da aguardente e medronho. Daqui vem o nome Caldeireiro, ou seja, aquele que faz caldeiras. Também os Reis faziam questão de ter peças decorativas e algumas também funcionais, como acontece com a braseira estilo D. João V, feita em latão (mais semelhante ao ouro). Trata-se de um trabalho da arte de cinzelar em baixo-relevo. Manter estas peças limpas era um trabalho árduo. Para tal era feito o que se chama ainda hoje de “ariar”, ou seja passar por areia fina, só ligeiramente abrasiva. Esta areia era obtida nos ribeiros ou junto às noras. Esmagava-se uma folha de pita com um maço, tornando-se assim flexível. O suco da pita, junto com a areia molhada, formavam um esfregão que limpava e desoxidava o cobre ou o latão.

Tachos d’arame

O Mestre

Nascido em 1933 em Reguengos de Monsaraz, filho único de uma primeira relação da mãe, e irmão mais velho de mais cinco, de outra relação, Joaquim António Bôto rapidamente arcou com responsabilidades familiares. Foi com a ajuda de Francisco Margalha, tio por afinidade, que aos 12 anos entrou para a oficina do Joaquim da Ratinha. Cedo se apercebeu que os secredos também se desvendam e que a perfeição dava estatuto. Tornou- se bom artífice e, por isso deu-se ao luxo de procurar melhores condições de trabalho. Foi para a oficina do Marcão, também em Reguengos, até que o convidaram para Lagos, acenando-lhe com melhor salário. Ganhava 35$00 diários e passaria para 50$00, comidos, bebidos e dormidos, factores que que muito pesaram na sua decisão. Era tudo lucro e ele tinha 22 anos. Contudo Lagos não lhe agradou. “Era uma oficina muito pequena, sem condições, praticamente sem ferramentas.” Desistiu, decorridas sete semanas, mas deixou nome. Contente com o seu regresso às origens, ficou o antigo patrão que passou a pagar-lhe 35$00 e até a oficiona lhe prometeu como herança. E ele também estava satisfeito porque havia bom equipamento, bons artifices e competividade suficiente para acrescentar uma certa mais-valia ao ofício. O seu tio afoitava-se a imitar as peças de barro que os oleiros iam criando e ele não lhe ficava atrás. Foi desvendando todos os segredos do material e hoje garante que “tudo se pode fazer do cobre”, advertindo que tudo depende do artífice”. Enquanto um pode fazer uma peça com uma linha bonita, o outro faz a mesma peça sem linha nenhuma. No martelar se dá ou tira feitio. Nem toda a gente sabe martelar para dar o último retoque. É preciso dominar a técnica e a arte. Pugnou sempre pela qualidade, por isso merece tanta reputação hoje, já praticamente afastado das lides, como mereceu outrora quando trabalhava por conta de outrem, tanto em Reguengos como em Lagos, para onde voltou nos anos 60, instigado pelo patrão Bexiga para quem já havia trabalhado por pouco tempo. Foi aquando das comemorações Henriquinas, em 1960, que um mestre de cozinha de Lagos, chamado Hermano Baptista, decidiu responder a um convite para preparar várias refeições, para algumas indidualidades oficiais, que vinham à inauguração da nova Pousada do Infante em Sagres, criando um prato de peixe num tipico apetrecho - a cataplana. Para tal encomendou uma série delas ao patrão de Joaquim Bôto que as executou. Entre os convidados vinha a conhecida Maria de Lourdes Modesto , que tinha o programa de culinária na jovem RTP. O sucesso foi tanto que o cozinheiro entendeu oferecer uma cataplana a ela. Quando em consequência foi apresentada a cataplana e algumas receitas de cariz algarvio, o impacto foi tanto que o Mestre Bôto passou mais de três anos consecutivos a fabrícá-las em cobre.

Pouco tempo depois passou a acumular o horário de operário por conta de outrém, com o trabalhador por conta própria, somando quase o dobro às habituais 8 horas. Fez milhares de cataplanas. De artista especializado, passou a produtor em série, respondendo às solicitações do mercado e a uma moda rapidamente instituída tradição. Ainda em Lagos, o seu principal cliente, foi a Mercearia Aliança em Faro, que lhe comprava tudo o que conseguisse enviar, especialmente cataplanas. Foi quem lhe deu a coragem e confiança para se afoitar numa oficina e loja próprias, o que só veio a conseguir quando se mudou com a familia para Faro. A relação com a cataplana foi sempre muito marcante ao longo a sua carreira profissional, executando-as para uma utilização efectiva, tanto nas cozinhas domésticas como para uso na restauração, todas sempre de grande qualidade, beleza e robustez. Tornou-se o principal fornecedor de artesanato em cobre para a Região de Turismo do Algarve (RTA), criando uma chaminé algarvia em cobre (33cm), para ser usada como troféu desportivo e também para ser oferecida nos eventos oficiais. Outro marco importante foi a criação de uma sapatilha em cobre, como Taça dos Clubes Campeões Europeus de Corta-Mato . Semelhante à bota de ouro do futebol, os moldes foram obtidos através de um modelo da Asics, entregue pelo atleta Ezequiel Canário. Não sendo mais produzida hoje, tornou-se no simbolo de cartaz do Cross Internacional das Amendoeiras em Flor (Albufeira). Seria de toda a injustiça não referir o facto de Joaquim Bôto ser organizado e meticuloso. Se mais provas fossem necessárias, depois de se conhecer as peças que faz, bastava consultar os cadernos onde, ao longo da sua carreira, foi anotando pormonorizadamente, o desenho e as medidas, tanto das peças que lhe foram encomendadas como das suas próprias criação. Constitui um valioso acervo de exemplares que poderão vir a preencher páginas e parcelas da história da profissão de caldeireiro.

Receitas

Estas receitas foram recolhidas em Lagos, junto de cozinheiros locais, por altura das comemorações Henriquinas (500 anos da morte do Infante D.Henrique. 1460 - 1960), para serem oferecidas na compra da cataplana e auxiliarem assim os novos utilizadores. O modo como estão escritas, corresponde ao texto original e a uma transcrição da forma oral desses cozinheiros Algarvios se expressarem.

Ameijoas na Cataplana I Unta-se as duas partes da cataplana com margarina, a seguir põe-se uma camada de ameijoas, uma folha de louro, ramos de salsa, rodelas de cebola e carne de porco frita. Vai ao lume 15 minutos.

Ameijoas na Cataplana II Alourar rodelas de cebola (bastantes), alhos esmagados sem tirar a pele, salsa picada e azeite, um pouco de piri-piro, maragarina ou manteiga, vinho branco bom e pimentos encarnados (morrones). Caso não houver, usar pimentão. Depois de alourar a cebola, a salsa e os alhos, deitar o vinho, as ameijoas e carnes frias (fiambre, paio e mortadela). Estar ao lume mais 5 ou 10 minutos.

Carnes diversas com ameijoas, conquilhas ou ambos os mariscos Carne de vitela e carneiro, feito em pequenos bifes ou com osso, bem esfregados com alho, carne de porco frita, bastante cebola, sala, meia folha de louro, pimenta moida, bocados de galinha ou frango, banha e margarina em partes iguais, 2 decilitros de vinho branco, as ameijoas e conquinhas e por cima tirinhas de presunto, mais um raminho de salsa e piri-piro ao gosto. (O frango ou galinha é préviamente cozido ou frito). Vai ao lume 15 a 20 minutos.

Perdiz ou frango com conquilhas ou ameijoas Frita-se a perdiz em manteiga ou margarina e dentes de alho apenas esmagados (com pele rosada), uma folha de louro. Depois de fritar, deitar vinho do Porto ou qualquer outro vilnho velho. Deitam-se as ameijoas ou conquilhas. Tapa a cataplana e está ao lume mais 5 minutos. Quem gostar deita piri-piri que fica muito bem.

Bife de Cebolada Arranjar o bife numa pelangana, com 2 folhas de louro e 2 ou 3 dentes de alho picado e o respectivo sal, pimento ou piri-piri ao paladar e tapar de vinho branco bom, uma hora ou duas de infusão. Depois deitar na cataplana 100grs de manteiga ou margarina, uma camada de bifes, outra camada de cebolas às rodelas até terminar. No tempo do tomate leva meio quilo, quando não houver leva 50 a 100grs de calda. Leva-se ao lume ou forno durante 20 minutos.

Bacalhau na Cataplana Tudo às camadas pela ordem seguinte: Bastante tomate e cebola, salsa e alho, batatas cortadas às rodelas e pimentos encarnados (morrones). O bacalhau préviamente demolhado, axeite e margarina, 1/4 L de bom vinho branco, Tapar a cataplana. Está ao lume cerca de 15 minutos. Se quando estiver quase pronto lhe deitar ameijoas ou conquilhas, ficará optimo.

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